A contribuição da sociedade civil é fundamental neste momento de crise sistêmica e de muitas incertezas. A seguir a contribuição do Instituto Mosaiko que procura visualizar cenários e levantar perguntas necessárias. De modo especial as Igrejas podem ser chamadas a
Convencer a população sobre as medidas que sejam necessárias criando espaços seguros de debate e de socialização das informações.
O Mosaiko - Instituto para a Cidadania - é um Instituto Angolano, sem fins lucrativos,
que visa contribuir para uma cultura de Direitos Humanos em Angola. Fundado em
1997, pelos Missionários Dominicanos (Ordem dos Pregadores – Igreja Católica),
foi a primeira instituição angolana a assumir, explicitamente, como missão, a
promoção dos Direitos Humanos em Angola.
Planear em função dos possíveis cenários
Planear face a um inimigo desconhecido que é o novo
coronavírus acarreta, inevitavelmente, um elemento de incerteza. Até ao
momento, não se sabe qual será a taxa de infectividade (R0) em Angola. Contudo,
parece ser evidente que a densidade populacional e as condições de saneamento
em zonas urbanas como Luanda, oferecem cenário ideais para a replicação e
transmissão do vírus.
Cenário aparente de planeamento: Com base nas declarações da ministra da
Saúde, sabe-se que o Executivo antevê que o pico de casos acontecerá à medida
que as temperaturas baixarem, no tempo de cacimbo. Com base nesta projecção, o
Executivo informou sobre a criação de capacidade de resposta médica hospitalar
para tratar até 2000 casos graves.
Mas existem outros elementos que merecem
consideração, nomeadamente:
a. Pensa-se num único surto grande ou em vários
surtos com menor dimensão?
b. Antecipa-se um maior número de casos em zonas
urbanas?
c. Se projectar a necessidade de cuidados
especializados para 2000 doentes com quadro clínico severo e grave, pode-se
projectar um total de 10,000 casos positivos. O cálculo é feito com base na
experiência da China[1].
d. Há previsão de identificar, testar, isolar e
tratar os casos com sintomatologia leve?
e. Os municípios e as províncias foram orientados
para assegurar os serviços de rotina de cuidados primários de saúde no decorrer
dos próximos meses?
f. Qual o plano específico de contingência para
garantir os recursos humanos necessários e como está prevista a sua distribuição pelos cuidados
hospitalares e cuidados primários de saúde, caso se enfrente uma epidemia da
dimensão aparentemente projectada?
g. A cadeia de abastecimento de medicamentos e
consumíveis médicos foi planeada e dimensionada para os cuidados de urgência e
os cuidados de rotina?
Planear para que a cura não seja pior que a doença
1. Comunicar os planos e as intenções para preparar
melhor a população: As conferências de imprensa da Comissão Coordenadora de
Combate à COVID-19, resume-se à divulgação do número de casos e à transmissão
da mensagem de que “está tudo sob controlo”. Contudo, a população que vive do
sector informal e do sector empresarial formal precisam saber quais as
previsões do Executivo para o cenário previsto de 2000 casos que necessitam de
cuidados especializados e de 10.000 casos totais. E no caso de ocorrer um
imprevisto, com menos casos ou mais, quais as decisões previstas?
É importante notar que de um modo geral, quem toma
as decisões é funcionário público, é sujeito a ameaça de contágio, mas o seu
salário é protegido. A maioria da
população que vive de rendimento precário corre um maior risco de vulnerabilidade
devido à falta de rendimento por tempo prolongado do que vir a morrer de
COVID-19. Os proprietários e empregados
das pequenas e médias empresas também correm maior risco de perder os seus
rendimentos por um período prolongado ou de forma definitiva.
2. Política de testagem: é verdade que Angola não
possui uma rede de laboratórios com capacidade para fazer os testes de COVID-19
neste preciso momento. Contudo, mesmo sem a ameaça deste vírus, o país
precisaria de alargar a rede nacional de laboratórios. O Ministério de Saúde informou que 15
províncias terão, em breve, a capacidade de fazer os testes moleculares que
permitem o diagnóstico de coronavírus na fase inicial de infecção.
Falou-se também, na compra e a validação de testes
rápidos que detectam os anticorpos, mas a previsão de uso de testes rápidos não
foi explicada.
3. Restringir movimentos de pessoas: Qual o cenário
previsto pelo Executivo, em termos de limitação de movimentos intra e
inter-provincial?
a. Pretende-se ou não aguardar a confirmação da
transmissão comunitária do coronavírus, antes de tomar decisões sobre a
limitação de movimento de pessoas?
b. As medidas continuarão a ser aplicadas em todo o
território nacional, de forma igual ou prevê-se determinar zonas de transmissão
de coronavírus para melhor definir o cerco e os movimentos da população?
c. Qual o plano para criar condições adequadas e
sustentáveis de saneamento nos mercados principais e nas escolas em preparação
para um combate duradouro à transmissão deste vírus como de outras viroses e
doenças endémicas?
d. Determinados países solicitam às pessoas idosas
e pessoas com doenças crónicas para praticarem o auto-isolamento, ficando
dentro de casa afim de reduzir a demanda por cuidados hospitalares
especializados.
4. Província de Luanda – caso especial: No caso de confirmar casos positivos com
sintomatologia leve dentro das comunidades de Luanda, será necessário
desenvolver uma política e estratégias que facilitem a execução e impeçam o movimento
não controlado de pessoas de Luanda para outras partes do país. Outras medidas
desejáveis são:
a. O mapeamento de casos por bairro (não somente
por distrito), para saber melhor onde restringir os movimentos de pessoas. É
possível que não seja necessário decretar um “lockdown” em todas áreas de
Luanda.
b. Vigilância de óbitos em todos os cemitérios de
Luanda a fim de identificar qualquer aumento súbito de mortalidade.
c. Organizar um programa massivo de distribuição de
alimentos da cesta básica. É amplamente
demonstrado, pela cobertura das acções de distribuição, organizados pelas
administrações municipais nos bairros de Luanda que as estruturas do Estado não
têm experiência em matéria de distribuição de alimentos de forma criteriosa.
Pelo que se propõe que seja criado um Grupo Coordenador,
incluindo técnicos que já trabalharam com o Programa Alimentar Mundial, MINARS
e demais organizações que estiveram envolvidas na distribuição de bens
essenciais e alimentos, num passado recente nas Ajudas Humanitárias em Angola.
O Grupo Coordenador deverá elaborar um protocolo de
trabalho a ser implementado pelas administrações municipais. O protocolo
orientará sobre os seguintes elementos (a lista a seguir não é exclusiva):
Lista padronizada de itens com custos;
Periodicidade de distribuição;
Critérios para inclusão no programa;
Termos de Referência para as entidades que se
candidatem à distribuição;
Termos de Referência para as entidades
fiscalizadoras de distribuição.
5. Políticas para manter a circulação de bens
essenciais e comida: o cenário cauteloso implica planear num horizonte de
meses, não de semanas. Assim, as políticas de comércio, agricultura e indústria
deverão prever como manter em funcionamento as actividades produtivas e
comerciais que são essenciais, no presente contexto de limitação de circulação
de pessoas. O alargamento do programa de testagem será prioritário afim de
facilitar a elaboração e a revisão de planos em função do controlo de casos.
6. Serviços de Saúde: não é possível suspender os serviços
rotineiros de saúde. Os Angolanos não vão parar de adoecer de malária e outras
infecções respiratórias, de precisar de medicamentos para tuberculose, VIH,
diabetes e hipertensão. Os princípios
básicos a ter em conta, com base nos conhecimentos de momento, parecem ser os
seguintes:
a. Separar os fluxos de trabalho no sentido de
assegurar que os serviços de resposta à COVID-19 sejam separados dos demais
serviços;
b. Nas unidades sanitárias que prestam serviços de
rotina, assegurar fluxos separados de atendimento para:
Doentes crónicos que fazem consultas de rotina.
Fluxos separados significam que o atendimento médico, os serviços de
laboratório e de farmácia ocorrem em espaços ou unidades dedicadas;
Os serviços de rotina de atendimento pré-natal, o
atendimento à criança e vacinas devem continuar a funcionar normalmente, para
prevenir o surgimento de surtos de pólio, sarampo e febre amarela.
c. Nos serviços de urgência ou de atendimento
médico externo, o fluxo de atendimento de pessoas com febres e sintomas
respiratórios deverá ser separado. Ao pessoal que atende nas urgências, deverá
ser fornecido o devido equipamento descartável de proteção pessoal. Os doentes
com sintomas sugestivos de COVID-19, deverão ser separados dos demais doentes e
fornecidas máscaras;
d. Todas as unidades sanitárias deverão ser
abastecidas com os medicamentos essenciais e os testes rápidos para malária. A
primeira patologia a ser descartada quando um paciente se apresente com febres,
fadiga e dores musculares é a malária. Se não pudermos descartar ou confirmar a
malária, no primeiro ponto de contacto, corre-se o risco que os serviços de
saúde se tornem focos de infecção de COVID-19;
e. No caso de se confirmar a transmissão
comunitária de Coronavírus em Luanda ou noutro sítio e de manter a previsão dum
número significativo de casos, será necessário:
Reduzir o número de unidades sanitárias que são
abertas e assegurar que estas unidades trabalham 24 sobre 24 horas;
Assegurar que todas unidades que serão
operacionais, num contexto dum surto de casos de coronavírus, tenham condições
adequadas de abastecimento de água e energia e condições para que o pessoal de
saúde tome banho após o turno de trabalho e antes de regressar para casa de
família;
Assegurar uma política sustentável de organização
de turnos e equipas de trabalho de maneira a proteger os profissionais de saúde
e as suas famílias e continuar a prestar os serviços à população em condições
adequadas de biossegurança.
7. Processamento de dados: assegurar os recursos
necessários para a recolha e o processamento de dados em tempo real. No contexto de uma epidemia, o acesso a dados
em tempo real é essencial para facilitar a tomada de decisão.
8. Movimentos de funcionários públicos e
responsáveis: As regras de limitação de movimento de pessoas quando não sejam
necessárias, aplicam-se a todos, incluindo ao aparelho de Estado. A
movimentação de equipas do nível nacional para “verificar” medidas tomadas ao
nível das províncias é desnecessária. A
fiscalização de execução das políticas do Estado é e deve ser da responsabilidade
do Governo da Província.
9. Convencer a população sobre as medidas que sejam
necessárias: É de extrema importância que as mensagens oficiais tenham uma
única fonte e que o conteúdo técnico e a linguagem sejam correctos. Winston
Churchill, na altura que a Grã-Bretanha fez uma declaração de guerra, em
péssimas condições de preparação, no início da Segunda Guerra Mundial, disse
que as características mais importantes dos dirigentes e líderes, no momento de
crise, são as de serem capazes de não mentir a eles próprios e nem à Nação. À
luz das informações disponíveis presentemente em Angola, não é possível afirmar
que a epidemia esteja controlada. Todos nós queremos que esteja controlada.
Contudo, se for preciso manter as medidas de controlo de movimento da população
por um período prolongado, tem que haver um debate mais aberto e inclusivo
sobre como mitigar o efeito das medidas na população mais vulnerável.
10. Polícia: Há debate em várias redes sociais
sobre as medidas de protecção para os agentes da polícia que se encontram na
linha da frente para a execução das medidas de contenção. A minha opinião é a
seguinte:
a. Distribuir máscaras para os agentes da polícia,
terão que ser descartáveis e em número suficiente para serem trocadas, pelo
menos, de 4 em 4 horas. Para usar máscaras com segurança, o agente da polícia
deverá ter condições para lavar regularmente as mãos;
b. A medida mais importante parece-me garantir
condições de saneamento e higiene nos postos e nas esquadras da polícia. No
caso de ocorrer a transmissão comunitária de coronavírus, as condições mínimas
para o agente da polícia são:
Ter roupa de trabalho e roupa de casa;
Ter condições nos postos e esquadras da Polícia
para tomar banho e mudar de roupa antes de regressar para casa de família.
Sou de opinião que a ameaça de coronavírus
apresenta uma oportunidade ímpar para dotar os mercados, as esquadras da
Polícia e as escolas com as condições mínimas de saneamento. Deve-se aproveitar
a presente situação de risco para melhorar o cotidiano do trabalhador do sector
informal, do agente da polícia, dos alunos e professores nas escolas, e assim,
mitigar as condições de risco para todos. O risco de contágio para a sociedade
é quão grande como o elo mais fraco do colectivo.
por: Mary Daly, médica especializada em Cuidados
Primários de Saúde, especialista em saúde comunitária e membro do Workshop de
Desenvolvimento
https://mosaiko.op.org/plano-cauteloso-de-combate-ao-covid-19-em-angola/