Uma das estratégias religiosas recorrentes durante o período de Pandemia do Coronavírus tem sido o jejum. Convocado por diferentes instâncias religiosas e até mesmo políticas o JEJUM pode ser reduzido a um ato sacrificial que tenta mover os desígnios divinos. Esta posição revela uma teologia retributiva, de um deus castigador ou indiferente - uma vez que precisa ser lembrado de sua misericórdia. Nada mais longe da tradição bíblica sobre o jejum. Leia abaixo uma contribuição a partir da Bíblia para ajudar neste debate.
O verdadeiro jejum - a prática do
jejum na Bíblia
Na Bíblia há muitas passagens que falam sobre os objetivos
do jejum. Eis algumas:
— preparar-se para o encontro com a divindade (Ex 34,28; Dt
9,9);
— chorar a morte de alguém (1Sm 1,12; 31,13);
— obter a cura de uma pessoa doente (2Sm 12,16-23; Sl
35,13);
— conseguir o perdão de Deus (1Rs 21,27);
— livrar o povo ou a nação dos perigos (Jz 20,26; 1Sm 7,6).
HISTÓRIA
No exílio babilônico (597 aC), o rito de jejuar passa a ser
uma das principais formas de o povo expressar sua fidelidade a Javé e manter a
sua identidade em terra estrangeira. Na Babilônia, as pessoas exiladas convivem
com outras divindades e, com o tempo, vão ficando cansadas, desanimadas e sem
fé. Aos poucos, vão assumindo a religião da Babilônia.
Nesse contexto, ressurge a preocupação de as pessoas não se
contaminarem com outras divindades, bem como a necessidade da purificação (cf.
Ez 20,18.26.30). Vejamos um exemplo: “Não se contaminarão mais com seus ídolos,
com suas abominações e com seus crimes. Vou libertá-los das revoltas que os
levaram a pecar. Vou purificá-los, e eles serão o meu povo e eu serei o Deus
deles” (Ez 37,23).
No exílio da Babilônia não há culto nem templo. A prática do
sábado, da circuncisão e das obras de piedade — oração, esmola e jejum — é
fundamental para garantir a coesão do povo judeu e se tornar justo diante de
Javé. É preciso estabelecer e observar as leis do puro e do impuro para manter
a sua identidade dentro do império. Pouco a pouco, o ser justo fica desligado
da prática social e se reduz à estrita observância da Lei e à salvação
individual (cf. Tb 12,8-10; cf. Tb 1,3.16-17; 4,6-11; Pr 25,21).
No pós-exílio, a importância da observância da Lei aumenta a
partir da consolidação da sociedade teocrata. Esta organização social se faz em
torno da Lei, que é transformada na Lei do imperador da Pérsia. Desobedecer a
ela implica castigos, multas e até pena de morte (cf. Esd 7,26-28).
O sistema do templo e a teologia do puro e impuro são
reforçados. A pessoa impura fica impedida de participar do templo, a morada
exclusiva de Deus. À única forma de voltar a participar da sociedade e do
templo é fazer sacrifício, que inclui a entrega de ofertas para os sacerdotes
do templo (cf. Lv 11-14). Assim, o templo e a Lei se tornam os principais
mecanismos de arrecadação de tributos para a manutenção das lideranças de
Jerusalém, que repassam uma parte do arrecadado ao império persa.
No processo de consolidação da Lei do puro e impuro, o rito
de jejuar é institucionalizado. Passam a existir quatro datas especiais de
jejum para toda a nação, as quais recordam fatos passados: o nono dia do quarto
mês, para lembrar a queda de Jerusalém (cf. 2Rs 25,3-21); o décimo dia do
quinto mês, a destruição do templo (cf. Jr 52,12-13); o segundo dia do sétimo
mês, a morte de Godolias (cf. 2Rs 25,23-25); e o décimo dia do décimo mês, o primeiro
ataque sobre Jerusalém.
Os dias nacionais de jejum são uma ocasião de festa (cf. Zc
8,19), que reúne todo o povo judeu. O jejum se volta para a purificação e a
salvação individual, sem compromisso com a prática social. O rito se esvazia. A
crítica profética anuncia que o verdadeiro jejum é a prática da justiça.
Vejamos como essa denúncia está expressa em Is 58.
“Por que jejuamos, e
tu não viste?” (Isaías 58,3a)
O profeta recebe uma ordem de Javé: “Grite a plenos pulmões,
sem parar; solte como trombeta o som da sua voz” (Is 58,1a). Mas gritar contra
quem e por quê? A denúncia é contra “o meu povo” por causa de seus crimes, e
contra “a casa de Jacó”, por não conhecer os seus pecados (cf. Is 58,1b). Nesse
primeiro versículo aparece o papel do profeta: ser porta-voz do julgamento de
Deus (Os 8, 1).
O destinatário da mensagem é chamado de “meu povo”. Isso
indica que entre Deus e o povo há uma relação de proximidade, de pertença: é o
povo da aliança. Porém, o povo se afastou do projeto de Javé.
Em seguida, o texto apresenta o motivo do julgamento: a
hipocrisia. Falam, mas não fazem: “Mostram desejo de conhecer os meus caminhos;
parecem povo que pratica a justiça e que nunca se esquece do direito… Eles
querem estar perto de Deus” (Is 58,2). Mas esse desejo não corresponde à
prática social, pois se contenta apenas com o rito de expiação para a salvação
individual. É um ritualismo vazio sem amor ao próximo.
As pessoas dizem estar próximas de Deus, mas não praticam a
justiça. Sentem-se ignoradas por ele, a ponto de afirmarem: “Por que jejuamos,
e tu não viste? Por que nos humilhamos totalmente, e nem tomaste conhecimento?”
(Is 58,3a). Trata-se de uma ironia. Diante dessa reclamação, segue a resposta.
Deus se afasta daquelas e daqueles que buscam o próprio interesse. Dessa forma,
o jejum não é um meio para viver a prática da justiça, mas um rito vazio, pois,
enquanto essas pessoas jejuam, continuam explorando e oprimindo suas empregadas
e seus empregados (cf. Is 58,3b).
O culto que não provoca mudança de atitude não será aceito
por Deus. De nada adianta jejuar e continuar explorando a irmã, o irmão, usando
de violência e opressão. O jejum que agrada a Deus não é uma ação isolada, na
qual a pessoa fica sem alimento apenas por um dia, mas uma prática social
constante, que requer assumir o projeto de Deus no dia a dia.
Em Is 58,6-7, o grupo profético descreve qual é o jejum que
agrada a Deus. O jejum valorizado por Deus é acabar com as prisões injustas,
desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar
qualquer jugo. Aqui temos a apresentação de um quadro social de grande
opressão. O termo “corrente” em hebraico, hartsubbâ, que também pode ser
traduzido por algema ou atadura, só aparece em Is 58,6 e no Salmo 73,4: “Vejam!
Para eles não há tormentos, e seu corpo é sadio e robusto”. O justo vê a vida
feliz dos
injustos e questiona a teologia da retribuição, que afirma
que Deus recompensa os justos com vida longa, terra e descendência. A realidade
mostra que os justos estão sofrendo sob o jugo da opressão.
A palavra “jugo” significa vara ou o travessão de canga.
Trata-se de termo pouco usado na Bíblia Hebraica — apenas dez vezes e somente
em livros do exílio e do pós-exílio (Levítico, 1Crônicas, Isaías, Jeremias e
Ezequiel). O fato de o termo jugo ser usado duas vezes em 58,6 e uma vez em
58,9 pode nos indicar a intensidade da opressão. Deixar livre e despedaçar
qualquer tipo de jugo é fazer acontecer o ano da graça de Javé, anunciado em Is
61,1-4.
Em Is 58,7, o jejum que nos aproxima de Deus passa pela
realidade cotidiana, exige a partilha dos próprios bens em vista da
sobrevivência de outras pessoas: “repartir o pão com quem passa fome, hospedar
em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que está nu, e não se fechar à
sua própria gente”. Esse compromisso deve acontecer na vida do dia a dia. O
jejum deve ser uma prática que tenha repercussão social.
Quem pratica o verdadeiro jejum será abençoado com a presença
de Deus (cf. Is 58,8). E, mais uma vez, o texto repete as condições para Deus
ouvir o clamor do seu povo: afastar o jugo, eliminar o dedo acusador, dar o pão
ao faminto e matar a fome do oprimido (cf. Is 58,9b.10a). O dedo acusador é uma
expressão que pode ter o sentido de calúnia ou de acusação sem provas.
Portanto, realizar a justiça é fazer a luz brilhar nas trevas e acabar com a escuridão
(cf. Is 58,10b; 59,9).
No fim do capítulo (Is 58,11) há várias imagens que retomam
as promessas de vida em abundância. Ter Javé como guia e água no deserto nos
faz lembrar o novo êxodo, anunciado pelo grupo do Segundo Isaías (cf. Is
41,17-20). A libertação é um processo contínuo e só acontecerá com a
colaboração de todas as pessoas da comunidade.
A fartura não se reduz a ter comida na mesa, mas envolve
também possuir a terra, condições dignas para sobreviver. A fartura nos faz
pensar na imagem do pastor: “Javé é o meu pastor. Nada me falta. Diante de mim
preparas a mesa, à frente dos meus opressores” (Sl 23,1.5a). E mais: “Javé
fortificará os seus ossos e você será como um jardim irrigado”. Não faltarão as
condições para a vida desabrochar: a água nunca faltará. A restauração da nova
comunidade é responsabilidade de todos os seus membros.
O sistema oficial do templo, especialmente o culto que se
transforma num ritualismo vazio, a teologia da retribuição e as leis referentes
à pureza, faz surgir muitas exclusões, entre as quais podemos citar a das
pessoas pobres, que, além de privações, sofrem também rejeição sociorreligiosa.
Os estrangeiros e as estrangeiras vivem em situação permanente de impureza.
O corpo do homem também está codificado, pois qualquer
líquido expelido por ele provoca a impureza. A mulher é a pessoa mais atingida
por esse sistema, pois constantemente está em dívidas com o templo, seja por
causa da menstruação, do dar à luz ou da relação sexual (cf. Lv 12; 15,18).
Enfim, o corpo da pessoa está aprisionado em normas e códigos, é o causador de
separações e discriminações. Diante dessa situação de opressão religiosa,
surgem muitos gritos e protestos, mostrando que Javé é Deus dos pobres e acolhe
a todas e todos. É o Deus da vida!
O jejum que Deus quer
Desde criança aprendemos que o jejum é um culto que nos
aproxima de Deus e das pessoas que não têm o que comer. É uma forma de
privar-se de algum alimento para comungar com a irmã e o irmão necessitado.
Embora seja uma prática que tem o seu sentido religioso, é necessário ir além.
Novamente cabe a pergunta: “Qual é o jejum que Deus quer?”.
O texto de Isaías 58 é muito forte e objetivo. De nada
adianta jejuar e continuar buscando os próprios interesses, esmagando as
pessoas para conseguir alcançar os objetivos particulares (cf. Is 58,3). O
verdadeiro culto a Deus exige compromisso permanente com a vida das pessoas
empobrecidas. Não se trata de gesto esporádico, suscitado por períodos de
campanhas, mas de espiritualidade que nos leve a um cuidado amoroso com a Vida.
O jejum forçado de milhares de crianças desnutridas, de
mulheres e homens é um grito que clama aos céus, denunciando a não realização
do projeto da partilha e da solidariedade. O rito de jejuar é sentir e viver,
na própria pele, a situação de fome de tantas irmãs e irmãos. Que a vivência do
jejum nos leve a assumir, com outras pessoas, projetos empenhados na busca de
realização de uma sociedade justa, onde a partilha não seja apenas um sacramento,
mas uma vivência concreta.
“Por que jejuamos, e tu não viste?” (Is 58,3)
https://www.vidapastoral.com.br/artigos/temas-biblicos/o-verdadeiro-jejum-por-que-jejuamos-e-tu-nao-viste-is-583/
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