Jornalista angolano analisa as reações e comportamentos de parte da população apontando para outras "enfermidades sociais" que revelam a falta de solidariedade e de humanidade. Numa perspectiva teológica a espera da cura e medicamentos desenvolvidos pela ciência deve se fazer acompanhar pelo tratamento de cura das relações sociais, do fortalecimento dos vínculos sociais e da construção colectiva de objectivos.
Ignorância, maldade e cobiça: esta pandemia não tem cura?
A OMS declarou, na segunda-feira, 23, que a pandemia do novo
coronavírus está a acelerar (coisa previsível, pois trata-se de um vírus novo),
mas que pode ser combatida e vencida.
O que parece não ter cura é outra pandemia, que se tem
revelado em toda a sua magnificente estupidez nesta crise que a humanidade está
a viver: a pandemia da ignorância, da maldade e da cobiça.
Como em tudo o resto, e para desgosto dos nacionalistas estreitos,
dos xenófobos e dos racistas de todos os tipos, também nisso os seres humanos
são iguais. Os exemplos estão aí: nos Estados Unidos, cidadãos de origem
chinesa ou asiática em geral são molestados, por causa do “chinesevirus”; em
Portugal, as “lojas dos chineses” deixaram de ter procura logo nos primeiros
dias do surto; em Timor Leste, professores portugueses são atacados por causa
do Covid-19; em Itália, a desobediência de cidadãos às ordens de confinamento
está a gerar um clima de crispação colectiva; em Angola, autênticos criminosos
vazam para as redes sociais listas de passageiros de voos internacionais, com
os respectivos dados pessoais, alguns dos quais estão a ser molestados.
A ignorância tem sido exibida com desfaçatez, inclusive por
líderes políticos e outros indivíduos com responsabilidades, estando na base
não só da demora em reagir à pandemia do coronavírus e também da sua propagação
brutal, mas também de muitos preconceitos que, se não forem combatidos
energicamente, poderão degenerar numa guerra de todos contra todos.
Quanto aos principais exemplos da ignorância, vão da
equiparação do Covid-19 a uma gripe comum e da crença de que só os velhos são
infectados, o vírus não aguenta o calor ou não contamina os negros africanos
(?) até às receitas, umas mais absurdas do que outras, para prevenir ou curar a
doença, desde tomar remédios cuja utilização ainda não foi testada clinicamente
até – imagine-se – beber vodka.
Por outro lado, não nos esqueçamos das delirantes teorias da
conspiração acerca do surgimento do novo coronavírus, elaboradas para todos os
gostos (ora é uma criação americana, ora uma manobra da China para dominar o
mundo).
Não têm faltado, também, as manifestações de maldade, das
mais “leves”, como a tendência para espalhar informações não confirmadas ou
acentuar as notícias negativas, às autenticamente criminosas, como estigmatizar
grupos particulares, que variam consoante os contextos, atribuindo-lhes a
“responsabilidade” pela propagação do novo coronavírus.
Por fim, a cobiça. Para quem é religioso, trata-se de um dos
pecados mortais. Indubitavelmente, é uma das mais “definidoras” características
dos seres humanos. Esta crise, sem esquecer os belos exemplos de solidariedade
e “comunitarismo” que chegam de todo o lado, está a comprová-lo, uma vez mais,
igualmente em todo o mundo. Atestam-no as práticas dos comerciantes (formais ou
informais, também chamados “empreendedores”) que estão a aumentar os preços dos
produtos e equipamentos sanitários usados para enfrentar o Covid-19 ou a pressão
das grandes empresas, a começar pelas companhias áreas (algumas das quais têm
tido lucros fabulosos nos últimos anos), sobre os governos, dos quais reclamam
ajuda para enfrentar os tempos difíceis que todos vivemos.
É indiscutível que os Estados têm a obrigação de intervir
para minimizar os impactos económicos e sociais da pandemia do coronavírus
(onde estão os defensores acérrimos do “Estado mínimo”?), mas a grande
prioridade devem ser os grupos mais desfavorecidos, os trabalhadores por conta
de outrem e as pequenas e médias empresas. As grandes companhias, que usem para
isso parte dos seus lucros acumulados. (20 de março 2020)
João Melo *Escritor
e jornalista ¨
>> http://jornaldeangola.sapo.ao/opiniao/artigos/ignorancia-maldade-e-cobica-esta-pandemia-nao-tem-cura
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