quarta-feira, 27 de maio de 2020

Dá-me de beber (água): o desafio da mulher africana em tempos de COVID-19 – Fica em casa


- Reflexão da Revda. Dra Elvira Moisés Cazombo - 


Introdução
“Mais do que uma questão de falta de infra-estruturas, e a semelhança do que acontece com o saneamento básico na cidade capital, o problema da água reside precisamente na forma de como os projectos são concebidos e executados”[1]. O lado desafiador da mulher em tempos de confinamento passa pelo grito por água. A ausência da água potável nas residências da maioria das famílias denuncia a fragilidade das politicas públicas e aponta para as práticas de injustiças acentuando a desigualdade de gênero. Pois, sempre foi costumeiro a manutenção de água nas residências familiares ser de responsabilidade do gênero feminino.
Citando a mesma fonte “o engenheiro Francisco dos Santos disse que, além das graves debilidades registadas na elaboração e execução desses projectos {água para todos}, houve também ausência de algum sentido de Estado e de patriotismo, a volta das pessoas que estiveram a frente destas operações”[2]

“Dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede nem precise vir aqui.”
A Bíblia registra vários relatos aonde a água é concebida como bem maior e um direito inalienável, vejamos:
Em Gêneses capítulo 1 o narrador descreve que Deus ordenou a construção das estruturas cósmicas dando o formato tanto para os céus quanto para a terra (v.1), a definição da iluminação e diferenciação dos períodos (v,2-5), a construção do firmamento no meio das águas, o separador entre as águas dando o formato do cosmo ( v.6-7) e definindo os dias entre primeiro e segundo dias. Este ordenamento foi para quebrar o caos, formatar o vazio e criar a coesão, a estrutura física da terra. Nesta cosmovisão o Espirito de Deus pairava sobre as águas. As águas foram usadas como separadores entre águas e águas (Gn 1: 6), águas debaixo do firmamento e águas em cima do firmamento dando origem ao céu. Pelo olhar do narrador bíblico, o céu é uma estrutura construída sobre forças das águas. 
Já para a estrutura terrestre, Deus disse: “juntem-se as águas que estão debaixo dos céus num só lugar e apareça a porção seca” (v.9). A partir daí o ser humano, feito a imagem e semelhança de Deus evoluiu sabendo que a água é parte integrante da vida, do bem estar total (Shalom), assim como a representação dos céus (habitação de Deus (?). A permanência dos seres viventes no jardim de Éden foi permeada também pela água, sendo que não é possível a haver jardins e plantas sem a água.
No Livro de Êxodo, o processo de libertação do povo no Egito da mão dos algozes faraónicos, a água foi de igual modo evidenciado como espaço de mediação. Na passagem pelo mar vermelho Deus ordenou a Moises para estender a vara que estava em sua posse sobre o mar e dividi-lo para os filhos de Israel passarem pelo meio dele em seco (sem água). Assim procedeu Moises e os filhos de Israel caminharam sobre a terra seca. As águas lhes foram qual muro a sua direita e a sua esquerda (Ex.14:22) de maneiras que nenhum israelita pereceu no meio do mar. O Deus da criação usa de igual modo a água para proteger os seus filhos libertando-os da escravidão para uma terra que mana leite e mel, longe do sofrimento e das injustiças sociais.
O olhar de Deus da criação que aparece no Egito para libertar é o mesmo que se manifesta em Samaria para salvar. 
No Evangelho Joanino Deus intervém na história da salvação através de seu filho Jesus Cristo. Na trama apresentado por João descreve essa presença de Deus. Veja: perto do meio dia (a hora sexta) uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse: “dá-me de beber!” diz-lhe a Samaritana: “Como, sendo judeu, tu me pedes de beber, a mim que sou samaritana?” Jesus respondeu-lhe: “se conheceras o dom de Deus, e quem é o que te pede: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva.” Disse-lhe a mulher: Senhor tu não tens com que tirá-la, e o poço é fundo (João 4.6-16). A resposta da mulher que o poço é fundo e Jesus (masculino) não pode tirar, resulta em indignação por parte de Jesus e sutilmente ela denuncia a visão tradicional que “a fonte é das mulheres”, espaço socialmente definido como sendo de domínio delas. Por isso somente ela pode manusear a retirada da água. A indignação de Jesus oferece uma nova perspectiva de oportunidade para a liberdade de escolha: “a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorra para toda vida” (v.14b). “Senhor, dá-me dessa água para que eu não mais tenha sede, nem precise vir aqui tira-la (v.15)
Esse diálogo entre Jesus e a mulher desafiam as tradições pois um judeu não poderia dirigir a sua palavra a um samaritano, nem tampouco um homem poderia falar com uma mulher em público (especialmente no caso de Jesus que era considerado um Rabi). A samaritana estava consciente de que a atitude daquele judeu era estranha e incomum por dois motivos: por ela ser samaritana e ser mulher, assim como a quebra das tradições que definem as tarefas socialmente estabelecidas que somente as mulheres devem executa-las.   
Na visão de Jesus a água só tem importância quando ela está a serviço da promoção da vida. Ela é inesgotável por isso afirma: “Quem crê em mim, como diz as Escrituras, do seu interior fluirão rios de água viva” (7.38). A água não se restringe como benefício apenas de uns em detrimento de outros, mas para todos que queiram beber. Ele se dispõe para saciar a sede tal como o firmamento sustenta os céus da terra assim é a água para com a vida humana. Então por que haver “torneiras para todos, mas não há água para ninguém”? A resposta deste questionamento deixa de ser teológica e aponta para o campo das políticas públicas que definem o que é prioritário e o que não é essencial na vida das pessoas.




“Torneiras para todos, mas não há água para ninguém”[3].
 Nas agendas das prioridades do governo quanto ao “Direito do Ambiente, o artigo 39º da Constituição da República de Angola estabelece que, todos têm direito à água e à vida num ambiente sadio e não poluído, cabendo a todos a obrigação de o defender e preservar.
Tal artigo reconhece o acesso à água e ao saneamento básico como direitos humanos fundamentais para o desenvolvimento sustentável, e a consequente redução da pobreza, como vem consagrado na Resolução 64/292, de 28 de Julho de 2010, das Nações Unidas.”[4]
O campo intrigante para a maioria dos países africanos está no quesito, água, “água para todos”. O continente é geograficamente ladeado de oceanos atlântico e indico. Rico em recursos hídricos citando como exemplo os rios de grandes afluentes Nilo e Zambezes, onde em cada país pode ser encontrado a particularidade de ter um pouco mais em relação ao outro. Seja como for a dimensão hidrográfica gigantesca do continente não justifica a falta de água potável para todos.
“De acordo com relatos da imprensa, na capital do país, a maioria da população urbana é abastecida mediante conexões públicas, partilhadas entre vizinhos, por chafarizes e camiões cisternas (esta última classificada como fonte não apropriada). Verdade ou mentira, o que acontece é que, em algumas zonas de Luanda, com realce para a localidade do Rocha Pinto, no Distrito Urbano da Samba, município de Luanda, o abastecimento de água potável continua a ser um problema e, segundo sustentam fontes do Jornal de Angola, são poucos os que conseguem dizer, com toda a certeza, até onde vai o alcance do famoso Programa “Água para Todos”, apesar de toda propaganda positivista que  se faz a volta do mesmo”. Isso denuncia que a água não é para todos, mas para um número reduzido que detém o capital financeiro. É a monopolização da água. Não há água para todos mas encontramos os supermercados comercializando águas oriundas de múltiplas fontes, dando que entender a existência de várias empresas que exploram os mananciais e os rios somando lucros desordenados. É o rosto do capitalismo expropriando aquilo que faz parte do bem comum e dividindo a sociedade em classes: Água potável para uns e as torneiras que não saem água para a maioria. Assim, se vê mulheres com cântaros na cabeça em busca de água, atravessando ruas e ruas, disputando as a travessias com carros que percorrem as estradas em altas velocidades. Muitas delas nestas disputas nem sempre o fim tem sido agradável, resultando em tragédias. Somando a estes desafios tem o paradoxo de “Fica em Casa”, é tempo de pandemia. Os membros familiares sobre sua tutela dizem: dá-me de beber! (A criança pede água para beber e o marido pede água para beber). Nestes tempos ela deveria ficar de igual modo em casa, abrir a torneira e desfrutar-se da água, concomitantemente, resguardada da possibilidade do contagio.  Porém as torneiras não saem água.
Tomando de exemplo Angola uma fonte do Jornal de Angola disse que, “nas províncias do Bengo e Cuanza-Sul mais de 90 por cento do Programa “Água para Todos” não funciona. “O mesmo foi realizado sem ter em conta a realidade objetiva do país. Não temos, em Angola, recursos humanos e materiais para pôr a funcionar os equipamentos sofisticados que o Estado comprou, no âmbito do projeto em causa”[5]. Essa justificativa distancia-se da visão profética de Deus que determina a água como um bem inalienável. Restringir o direito a água por qualquer justificativa é violar os diretos humanos, roubar a dignidade humanidade, destruir perspectivas e criar um modelo de racionalidade que tem por objetivo deixar a mulher numa condição vulnerável. Nas sociedades africanas culturalmente a água é providenciada pelas mulheres. Com essas ações administrativas ora justificativas por falta de recursos humanos ora por outras circunstancias tendem a penalizar a mulher para a violência. 
Em suma, o descaso pela falta de água é um meio discriminatório contra as mulheres e o ambiente vulnerável para as mulheres serem submetidas a violência doméstica em tempos de pandemia. Além espaço de reprodução da violência institucionalizada. Foi sobre este olhar que Jesus se aproxima a mulher samaritana para ressignificar o poço como espaço não de repreensão, mas de liberdade. A frase “torneiras para todos, mas não há água para ninguém”[6] é o grito denunciante das mulheres oprimidas que vivem a meio as injustiças sociais e a margem das políticas desseguradas e o descaso. Porém a mulher espera em dias melhores, por isso afirmam: “água tarda a chegar às torneiras”. Com as verbas dos dinheiros recebidos e a água não chega nas torneiras convertestes a justiça em alasona e deitais por terra a retidão (Amós 5.7). Por isso, “dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede nem precise vir aqui (neste poço), porque as torneiras são para todos, mas não há a água para ninguém, a mulher denuncia a vulnerabilidade que o poço lhe oferece para possibilitar que “corra a justiça como as águas e a retidão como ribeiros perenes. (Amós 5:24).





[1] http://jornaldeangola.sapo.ao/sociedade/agua-tarda-a-chegar-as-torneiras?fbclid=IwAR3cR9vkThPcxLxlMegw2ajUGKh9Y3ZpMlVDSG6TsiOP-3sNkTEasge1nrE
[2] Op cit
[3] Frase de uma mulher que denuncia a falta de água nas residências da maioria das famílias, segundo o jornal de Angola. http://jornaldeangola.sapo.ao/sociedade/agua-tarda-a-chegar-as-torneiras?fbclid=IwAR3cR9vkThPcxLxlMegw2ajUGKh9Y3ZpMlVDSG6TsiOP-3sNkTEasge1nrE
[4] http://jornaldeangola.sapo.ao/sociedade/agua-tarda-a-chegar-as-torneiras?fbclid=IwAR3cR9vkThPcxLxlMegw2ajUGKh9Y3ZpMlVDSG6TsiOP-3sNkTEasge1nrE

[5] http://jornaldeangola.sapo.ao/sociedade/agua-tarda-a-chegar-as-torneiras?fbclid=IwAR3cR9vkThPcxLxlMegw2ajUGKh9Y3ZpMlVDSG6TsiOP-3sNkTEasge1nrE

[6]http://jornaldeangola.sapo.ao/sociedade/agua-tarda-a-chegar-as-torneiras?fbclid=IwAR3cR9vkThPcxLxlMegw2ajUGKh9Y3ZpMlVDSG6TsiOP-3sNkTEasge1nrE


Nenhum comentário:

Postar um comentário