- Reflexão da Revda. Dra Elvira Moisés Cazombo -
Introdução
“Mais do que uma questão de falta de infra-estruturas,
e a semelhança do que acontece com o saneamento básico na cidade capital, o
problema da água reside precisamente na forma de como os projectos são
concebidos e executados”[1]. O
lado desafiador da mulher em tempos de confinamento passa pelo grito por água.
A ausência da água potável nas residências da maioria das famílias denuncia a fragilidade
das politicas públicas e aponta para as práticas de injustiças acentuando a
desigualdade de gênero. Pois, sempre foi costumeiro a manutenção de água nas
residências familiares ser de responsabilidade do gênero feminino.
Citando a mesma fonte “o engenheiro Francisco dos
Santos disse que, além das graves debilidades registadas na elaboração e
execução desses projectos {água para todos}, houve também ausência de algum sentido
de Estado e de patriotismo, a volta das pessoas que estiveram a frente destas
operações”[2]
“Dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede nem
precise vir aqui.”
A Bíblia registra vários relatos aonde a água é concebida como bem maior
e um direito inalienável, vejamos:
Em Gêneses capítulo 1 o narrador descreve que Deus
ordenou a construção das estruturas cósmicas dando o formato tanto para os céus
quanto para a terra (v.1), a definição da iluminação e diferenciação dos
períodos (v,2-5), a construção do firmamento no meio das águas, o separador
entre as águas dando o formato do cosmo ( v.6-7) e definindo os dias entre primeiro
e segundo dias. Este ordenamento foi para quebrar o caos, formatar o vazio e criar
a coesão, a estrutura física da terra. Nesta cosmovisão o Espirito de Deus
pairava sobre as águas. As águas foram usadas como separadores entre águas e
águas (Gn 1: 6), águas debaixo do firmamento e águas em cima do firmamento dando
origem ao céu. Pelo olhar do narrador bíblico, o céu é uma estrutura construída
sobre forças das águas.
Já para a estrutura terrestre, Deus disse: “juntem-se
as águas que estão debaixo dos céus num só lugar e apareça a porção seca” (v.9).
A partir daí o ser humano, feito a imagem e semelhança de Deus evoluiu sabendo
que a água é parte integrante da vida, do bem estar total (Shalom), assim como
a representação dos céus (habitação de Deus (?). A permanência dos seres
viventes no jardim de Éden foi permeada também pela água, sendo que não é
possível a haver jardins e plantas sem a água.
No Livro de Êxodo, o processo de libertação do povo no
Egito da mão dos algozes faraónicos, a água foi de igual modo evidenciado como
espaço de mediação. Na passagem pelo mar vermelho Deus ordenou a Moises para
estender a vara que estava em sua posse sobre o mar e dividi-lo para os filhos
de Israel passarem pelo meio dele em seco (sem água). Assim procedeu Moises e
os filhos de Israel caminharam sobre a terra seca. As águas lhes foram qual
muro a sua direita e a sua esquerda (Ex.14:22) de maneiras que nenhum israelita
pereceu no meio do mar. O Deus da criação usa de igual modo a água para
proteger os seus filhos libertando-os da escravidão para uma terra que mana
leite e mel, longe do sofrimento e das injustiças sociais.
O olhar de Deus da criação que aparece no Egito para
libertar é o mesmo que se manifesta em Samaria para salvar.
No Evangelho Joanino
Deus intervém na história da salvação através de seu filho Jesus Cristo. Na trama
apresentado por João descreve essa presença de Deus. Veja: perto do meio dia (a
hora sexta) uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse:
“dá-me de beber!” diz-lhe a Samaritana: “Como, sendo judeu, tu me pedes de
beber, a mim que sou samaritana?” Jesus respondeu-lhe: “se conheceras o dom de
Deus, e quem é o que te pede: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria
água viva.” Disse-lhe a mulher: Senhor tu não tens com que tirá-la, e o poço é
fundo (João 4.6-16). A resposta da mulher que o poço é fundo e Jesus (masculino)
não pode tirar, resulta em indignação por parte de Jesus e sutilmente ela
denuncia a visão tradicional que “a fonte é das mulheres”, espaço socialmente
definido como sendo de domínio delas. Por isso somente ela pode manusear a
retirada da água. A indignação de Jesus oferece uma nova perspectiva de
oportunidade para a liberdade de escolha: “a água que eu lhe der se fará nele
uma fonte de água que jorra para toda vida” (v.14b). “Senhor, dá-me dessa água
para que eu não mais tenha sede, nem precise vir aqui tira-la (v.15)
Esse diálogo entre
Jesus e a mulher desafiam as tradições pois um judeu não poderia dirigir a sua
palavra a um samaritano, nem tampouco um homem poderia falar com uma mulher em
público (especialmente no caso de Jesus que era considerado um Rabi). A
samaritana estava consciente de que a atitude daquele judeu era estranha e
incomum por dois motivos: por ela ser samaritana e ser mulher, assim como a
quebra das tradições que definem as tarefas socialmente estabelecidas que
somente as mulheres devem executa-las.
Na visão de Jesus a água só tem importância quando ela
está a serviço da promoção da vida. Ela é inesgotável por isso afirma: “Quem
crê em mim, como diz as Escrituras, do seu interior fluirão rios de água viva”
(7.38). A água não se restringe como benefício apenas de uns em detrimento de
outros, mas para todos que queiram beber. Ele se dispõe para saciar a sede tal como
o firmamento sustenta os céus da terra assim é a água para com a vida humana. Então
por que haver “torneiras para todos, mas não há água para ninguém”? A resposta
deste questionamento deixa de ser teológica e aponta para o campo das políticas
públicas que definem o que é prioritário e o que não é essencial na vida das
pessoas.
“Torneiras para todos, mas não há água para ninguém”[3].
Nas agendas das
prioridades do governo quanto ao “Direito do Ambiente, o artigo 39º da
Constituição da República de Angola estabelece que, todos têm direito à água e
à vida num ambiente sadio e não poluído, cabendo a todos a obrigação de o
defender e preservar.
Tal artigo reconhece o acesso à água e ao saneamento
básico como direitos humanos fundamentais para o desenvolvimento sustentável, e
a consequente redução da pobreza, como vem consagrado na Resolução 64/292, de
28 de Julho de 2010, das Nações Unidas.”[4]
O campo intrigante para a maioria dos países africanos
está no quesito, água, “água para todos”. O continente é geograficamente ladeado
de oceanos atlântico e indico. Rico em recursos hídricos citando como exemplo
os rios de grandes afluentes Nilo e Zambezes, onde em cada país pode ser
encontrado a particularidade de ter um pouco mais em relação ao outro. Seja
como for a dimensão hidrográfica gigantesca do continente não justifica a falta
de água potável para todos.
“De acordo com relatos da imprensa, na capital do
país, a maioria da população urbana é abastecida mediante conexões públicas,
partilhadas entre vizinhos, por chafarizes e camiões cisternas (esta última
classificada como fonte não apropriada). Verdade ou mentira, o que acontece é
que, em algumas zonas de Luanda, com realce para a localidade do Rocha Pinto,
no Distrito Urbano da Samba, município de Luanda, o abastecimento de água
potável continua a ser um problema e, segundo sustentam fontes do Jornal de
Angola, são poucos os que conseguem dizer, com toda a certeza, até onde vai o
alcance do famoso Programa “Água para Todos”, apesar de toda propaganda
positivista que se faz a volta do mesmo”.
Isso denuncia que a água não é para todos, mas para um número reduzido que detém
o capital financeiro. É a monopolização da água. Não há água para todos mas
encontramos os supermercados comercializando águas oriundas de múltiplas fontes,
dando que entender a existência de várias empresas que exploram os mananciais e
os rios somando lucros desordenados. É o rosto do capitalismo expropriando
aquilo que faz parte do bem comum e dividindo a sociedade em classes: Água
potável para uns e as torneiras que não saem água para a maioria. Assim, se vê
mulheres com cântaros na cabeça em busca de água, atravessando ruas e ruas,
disputando as a travessias com carros que percorrem as estradas em altas
velocidades. Muitas delas nestas disputas nem sempre o fim tem sido agradável,
resultando em tragédias. Somando a estes desafios tem o paradoxo de “Fica em
Casa”, é tempo de pandemia. Os membros familiares sobre sua tutela dizem: dá-me
de beber! (A criança pede água para beber e o marido pede água para beber). Nestes
tempos ela deveria ficar de igual modo em casa, abrir a torneira e desfrutar-se
da água, concomitantemente, resguardada da possibilidade do contagio. Porém as torneiras não saem água.
Tomando de exemplo Angola uma fonte do Jornal de
Angola disse que, “nas províncias do Bengo e Cuanza-Sul mais de 90 por cento do
Programa “Água para Todos” não funciona. “O mesmo foi realizado sem ter em
conta a realidade objetiva do país. Não temos, em Angola, recursos humanos e
materiais para pôr a funcionar os equipamentos sofisticados que o Estado
comprou, no âmbito do projeto em causa”[5].
Essa justificativa distancia-se da visão profética de Deus que determina a água
como um bem inalienável. Restringir o direito a água por qualquer justificativa
é violar os diretos humanos, roubar a dignidade humanidade, destruir
perspectivas e criar um modelo de racionalidade que tem por objetivo deixar a
mulher numa condição vulnerável. Nas sociedades africanas culturalmente a água
é providenciada pelas mulheres. Com essas ações administrativas ora
justificativas por falta de recursos humanos ora por outras circunstancias
tendem a penalizar a mulher para a violência.
Em suma, o descaso pela falta de água é um meio
discriminatório contra as mulheres e o ambiente vulnerável para as mulheres
serem submetidas a violência doméstica em tempos de pandemia. Além espaço de
reprodução da violência institucionalizada. Foi sobre este olhar que Jesus se aproxima
a mulher samaritana para ressignificar o poço como espaço não de repreensão,
mas de liberdade. A frase “torneiras para todos, mas não há água para ninguém”[6] é
o grito denunciante das mulheres oprimidas que vivem a meio as injustiças
sociais e a margem das políticas desseguradas e o descaso. Porém a mulher espera
em dias melhores, por isso afirmam: “água tarda a chegar às torneiras”. Com as
verbas dos dinheiros recebidos e a água não chega nas torneiras convertestes a
justiça em alasona e deitais por terra a retidão (Amós 5.7). Por isso, “dá-me
dessa água, para que eu não tenha mais sede nem precise vir aqui (neste poço),
porque as torneiras são para todos, mas não há a água para ninguém, a mulher
denuncia a vulnerabilidade que o poço lhe oferece para possibilitar que “corra
a justiça como as águas e a retidão como ribeiros perenes. (Amós 5:24).
[1] http://jornaldeangola.sapo.ao/sociedade/agua-tarda-a-chegar-as-torneiras?fbclid=IwAR3cR9vkThPcxLxlMegw2ajUGKh9Y3ZpMlVDSG6TsiOP-3sNkTEasge1nrE
[3] Frase de uma mulher que denuncia a falta de
água nas residências da maioria das famílias, segundo o jornal de Angola. http://jornaldeangola.sapo.ao/sociedade/agua-tarda-a-chegar-as-torneiras?fbclid=IwAR3cR9vkThPcxLxlMegw2ajUGKh9Y3ZpMlVDSG6TsiOP-3sNkTEasge1nrE
[4] http://jornaldeangola.sapo.ao/sociedade/agua-tarda-a-chegar-as-torneiras?fbclid=IwAR3cR9vkThPcxLxlMegw2ajUGKh9Y3ZpMlVDSG6TsiOP-3sNkTEasge1nrE
[5] http://jornaldeangola.sapo.ao/sociedade/agua-tarda-a-chegar-as-torneiras?fbclid=IwAR3cR9vkThPcxLxlMegw2ajUGKh9Y3ZpMlVDSG6TsiOP-3sNkTEasge1nrE
[6]http://jornaldeangola.sapo.ao/sociedade/agua-tarda-a-chegar-as-torneiras?fbclid=IwAR3cR9vkThPcxLxlMegw2ajUGKh9Y3ZpMlVDSG6TsiOP-3sNkTEasge1nrE
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