Entrevista com Ana Lúcia Sá, investigadora do Centro de
Estudos Internacionais do Iscte (Instituto Universitário de Lisboa, instituição
pública de ensino universitário, especializada nas áreas de Ciências
Empresariais, Ciências Sociais, Tecnologia e Arquitectura), que, há duas
semanas, foi oradora no webinar África em Tempo de Covid-19
Acredita que em termos de Covid-19, o pior para África ainda
está para vir?
Acredito que o pior está para vir em termos de consequência
da Covid-19, não falando necessariamente do contágio pelo novo coronavírus, mas
sim nos vários campos que afectam os Estados e as populações. O actual contexto
vai ter consequências directas no aumento das já existentes desigualdades e
assimetrias a nível global, sendo mais prementes em países com maiores
vulnerabilidades. Em todos os países são adoptadas medidas para lidar com uma
situação excepcional e isso tem também consequências directas nas economias do
continente. O sistema internacional é, como sabemos, desigual. Há países que
dependem da exportação de matérias primas, seja da indústria extractiva seja de
outros bens. África tem sido o fornecedor de matérias primas sem que isso
reverta a favor da melhora das condições de vida de grande parte das populações
ou em medidas claras de protecção social. Vários países africanos, como a
Argélia ou Angola, encontram-se entre os mais desiguais no mundo, com uma
percentagem significativa da população a viver em situação de pobreza
multidimensional. Estima-se que em Angola 1 em 3 pessoas tenha essa experiência
de pobreza multidimensional. E isso tem implicações directas no acesso à
educação, a cuidados básicos de saúde e a trabalho. Um número grande de pessoas
vive de trabalhos precários e, em termos socioeconómicos, as medidas de
confinamento e de distanciamento social levam directamente a dificuldades de
sobrevivência.
Com o fecho de fronteiras, países e localidades que dependem
da importação de pequenos bens de consumo ou de material médico estão em
situações humanitárias graves. A tudo isto se juntam secas ou pragas de
insectos, como as que se vivem na África Austral. A este quadro ainda podemos
juntar um expectável fortalecimento de tendências autocráticas, com formas
diversas de repressão associadas a Estados de Calamidade ou de Emergência, ou a
suspensão de campanhas de vacinação, estimando-se o regresso de doenças que já
estavam controladas, como a poliomielite e o sarampo. Em suma, para a maior parte
das pessoas no continente africano, a luta contra a Covid-19 é mais um factor
agravante das lutas quotidianas que tem de travar.
Como vê a situação nos PALOP? Guiné-Bissau está pior, por
causa da fragilidade do Estado ou é exagerado tirar esta ilação?
Quando a OMS declarou a situação de pandemia, os países
tomaram medidas céleres, mesmo que não tivessem casos diagnosticados. Há quem
defenda que uma das vantagens dos países africanos foi esta iniciativa
atempada. Houve estratégias diferentes por parte dos Governos africanos para
lidar com esta crise, que não dependeram do número de casos diagnosticados nos
países ou sequer dos regimes políticos. Nos dois extremos, houve países que não
impuseram distanciamento social e realizaram eleições previstas, como o
Burundi, e países que adoptaram medidas mais severas de confinamento, como
Angola. A Guiné-Bissau estava a braços com uma crise política que era urgente
resolver e que teve implicações na forma como não respondeu às medidas
sugeridas pela OMS para conter uma rápida propagação do vírus. Houve inclusive
o desrespeito pelos próprios actores políticos de medidas de distanciamento
social. A preocupação prevalecente era a de legitimar o Governo e não a saúde
pública. Para além de ser, dos PALOP, o que tem mais casos reportados, logo
seguido pela Guiné Equatorial, é um país com estruturas deficitárias de saúde,
sem capacidade de resposta. Os PALOP vão ter consequências desastrosas em
termos de tecido económico e social. Já se sabe que as remessas de emigrantes vão
diminuir drasticamente, o turismo vai entrar em grave crise e as exportações
também. Em Angola, país em recessão económica, a cesta básica tem um custo de
15.000 kwanzas (cerca de 23 euros), que é incomportável. Em Moçambique,
vivem-se pressões de grupos terroristas e focos de conflito.
São fiáveis os dados no continente?
O continente africano é muito diverso e há países com dados
mais facilmente apuráveis do que outros. O mesmo se passa nos outros
continentes. No caso específico da Covid-19, não creio que haja dados fiáveis
em termos globais, por motivos diversos, que vão de um número mais reduzido de
testes e desconhecimento do número real de infectados até à falta de
transparência. Mas quando falamos de dados, mesmo não relacionados com esta
questão sanitária, sabemos das dificuldades em ter dados precisos,
especialmente em países em conflito, ou pós-conflito ou nos que têm estruturas
burocráticas mais frágeis. Há muitas pessoas sem existência legal, porque não
estão registadas. Há países nos quais é mais fácil obter cartão de eleitor do
que documento de identificação. No caso de regimes autoritários, não há uma
prática de transparência na recolha e divulgação de dados. Inclusive nota-se
censura sobre a pandemia e os casos realmente existentes. E estes são alguns
dos problemas que se colocam quando falamos de dados e da sua fiabilidade.
Ainda assim, é de louvar o trabalho do Centro para o Controlo e Prevenção de
Doenças da União Africana em termos de recolha e tratamento de dados e de
assistência aos países membros. Apesar de ser uma instituição recente (criada
em 2017), o Centro tem um papel reconhecido no controlo e mitigação dos efeitos
de surtos de ébola na África Central. Esperemos que seja uma instituição que
continue a crescer e a merecer os apoios de governos e de privados.
A pandemia tornou a Europa indesejável para os migrantes ou
o sonho do eldorado mantém-se?
A percentagem de africanos que emigra para a Europa é
bastante pequena quando vemos os números totais. A grande maioria das pessoas,
quando emigra, fá-lo dentro do continente. O grosso de emigração dá-se para
países produtores de recursos e de matérias primas destinadas ao mercado
global. Comparada com estes países, a Europa nada tem de eldorado. É mais
atractiva para profissionais altamente qualificados, mas, ainda assim, sou
bastante reticente em continuarmos a considerar essa imagem da Europa como se de
um eldorado se tratasse, quando é o continente africano o que tem mais
capacidade de atracção.
Há novos casos de ébola na RDCongo
A OMS está a dar uma resposta institucional e global a esta
crise. Mas quando falamos em OMS não falamos apenas da vontade de uma
instituição global, mas de todos os que permitem ou inibem as acções desta
estrutura. As decisões de países de fecharem fronteiras, de proibirem viagens,
entre outras, para conter o contágio levou a que profissionais de saúde e
equipamento médico não chegassem onde são necessários. Se num país como
Portugal temos bem instituído o plano nacional de vacinação com cobertura
universal, o mesmo não se passa em Moçambique, por exemplo, que depende
largamente de estruturas internacionais e de organizações não-governamentais
para poder vacinar.
A OMS e o UNICEF já advertiram para a previsibilidade de 80
milhões de crianças poderem contrair doenças como o sarampo ou a poliomielite,
porque os programas de vacinação foram interrompidos. Esta situação nunca se
verificou a esta escala e deve-se a todo o contexto à Covid-19. Neste momento,
está activo um novo surto de ébola no leste da República Democrática do Congo e
é necessária uma rápida resposta. A Covid-19 não deverá colocar durante mais
tempo em suspenso as respostas às questões sempre emergentes em contextos mais
vulneráveis.
Leonídio Paulo Ferreira |*
21 de Junho, 2020
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