quinta-feira, 4 de junho de 2020

Declaração dos Grupos Africanos de Justiça Climática referente a COVID-19






 A pandemia da COVID-19 é provavelmente o maior acontecimento à escala global dos últimos tempos. A crise está a destacar e a exacerbar as desigualdades existentes no sistema socioeconómico neoliberal e patriarcal globalizado. Em muitos dos nossos países em África os impactos em cascata das políticas de isolamento estão a evoluir para crises sociais e económicas profundas, onde os mais vulneráveis são e voltarão a ser os mais afectados. Os nossos povos debatem-se com o acesso limitado aos cuidados de saúde, a perda de postos de trabalho e de rendimentos, com cortes de energia eléctrica e água, com dificuldades em pagar as contas e até mesmo com o risco de despejo, quando a renda já não pode ser paga. Em toda a África, pode estar a surgir uma grande crise alimentar à medida que os mercados informais são encerrados e os meios de subsistência são afectados.


Neste momento de crise, nós, o abaixo assinados movimentos sociais africanos, organizações da sociedade civil e aliados, saudamos os trabalhadores do mundo, enfermeiros, médicos e outros profissionais da saúde, nos mercados e supermercados, limpadores de rua, recolhedores de lixo e catadores de lixo, trabalhadores domésticos e provedores de cuidados, transportadores, camionistas, trabalhadores do sector alimentar, camponeses, produtores de alimentos, aqueles que nos fornecem energia e todos aqueles que têm de trabalhar diariamente para alimentar as suas famílias; pelo trabalho corajoso e pelos sacrifícios que estão a fazer, para nos manter com vida à medida que muitos de nós permanecem em casa, fazendo também a nossa parte para conter o vírus.



Onde a crise climática se cruza com a crise do Covid-19 - África e o mundo devem forjar uma nova trajectória

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Infelizmente, a crise climática não vai parar enquanto o mundo se concentra em lidar com a crise sanitária da Covid-19. Ambas são crises provocadas por humanos e radicadas na forma como os nossos sistemas políticos e económicos tratam a Terra e o seu povo, movidos pela sede de lucro. Quando o mundo viu-se mergulhado na pandemia do Covid-19, a crise climática já estava a devastar o nosso continente e tantas outras partes do mundo. A África Austral continua a recuperar dos efeitos devastadores dos ciclones Idai e Kenneth do ano passado, enfrentando impactos climáticos debilitantes, incluindo secas, inundações, subida do nível do mar, etc. O aumento previsto da temperatura global em África é um prenúncio do colapso humano, social e ecológico.


As empresas transnacionais (TNCs) em conluio com Governos africanos e outras elites, operando com impunidade e desprezo pelas pessoas e pelo planeta, estão entre os principais responsáveis pelas actuais crises energética, climática, alimentar,de biodiversidade,e ecológica. As suas actividades têm impacto nos meios de subsistência das comunidades locais, ao açambarcar terras e capturando recursos naturais,incluindo através de mercados de carbono e outras soluções falsas, poluindo o nosso ar, água, terras, corpos e comunidades. Muitas vezes, a maior parte dos lucros que geram é transferida ilicitamente para fora do continente e são transferidos para os muitos paraísos fiscais em todo o mundo. Num momento em que o preço do petróleo bruto recentemente desceu abaixo de zero pela primeira vez na história, afirmamos que o fim da era do extrativismo, que prejudica as pessoas e o planeta, está à vista. É tempo de dizer adeus ao desenvolvimento sujo dos combustíveis fósseis e à agricultura industrial nociva.

A actual crise provocou uma redução temporária das emissões de carbono e da poluição devido às paragens ou à desaceleração de algumas indústrias, mas estas estão a ocorrer à custa do emprego e das estratégias de subsistência dos africanos e de outros que têm poucas ou nenhumas redes de segurança. Esta não é a “transição justa” que temos vindo a exigir, juntamente com os nossos amigos dos movimentos sindicais. Vemos também muitos Governos a eliminarem ou flexibilizarem os regulamentos e procedimentos ambientais, a fim de impulsionar desesperadamente o investimento a curto prazo, o que sem dúvida resultará numa maior degradação do meio ambiente ,num colapso da biodiversidade e no aprofundamento do ciclo de crise. No entanto, a forma como o ar tem sido desinfectado nalguns locais em lock-down é uma prova notável de quão insustentável é a economia “normal” - e o desenvolvimento “normal”. O planeta prosperará se escolhermos uma via de desenvolvimento diferente, os jovens verão pela primeira vez um céu azul profundo e claro, milhões de pessoas com asma irão respirar com maior facilidade conforme temos visto actualmente.


Os ajustamentos estruturais, medidas de austeridade, desmantelamento do Estado e dos serviços públicos, cortes nos serviços sociais, privatização dos serviços essenciais e endividamento, garantiram que os Estados africanos tenham menor capacidade para responder a essas crises. Isto está enraizado no legado colonial e pós-colonial africano e na nossa relação com instituições financeiras neoliberais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, que têm desembolsado empréstimos avultados com taxas de juro insustentavelmente elevadas, comportando condicionalismos de ajustamento estrutural. Não devemos permitir que estas práticas ditem a nossa relação com o Novo Banco de Desenvolvimento ou com quaisquer instituições do género. Todos os condicionalismos e/ou empréstimos de apoio solidário neste momento de crise devem ser públicos como parte de uma democracia nova e aberta.


Sem retorno a normalidade: que tipo de África e 
de mundo devem emergir desta crise?

A resposta rápida dos Governos e de outros intervenientes à pandemia da COVID-19 revela também a verdadeira inacção mundial na abordagem séria da crise climática e de outras crises. A análise é clara – lidar com a crise é fundamentalmente uma questão de vontade política para libertar vastas somas de recursos e mudar as políticas para enfrentar a crise e redireccionar todos os esforços para a sua contenção e resolução.

Não podemos voltar à normalidade. Precisamos de envisionar um mundo diferente, uma África diferente, para que este momento possa marcar um ponto de viragem para o nosso continente e para o mundo. A pandemia da COVID 19 está a mostrar que precisamos das soluções que nós, enquanto grupos que promovem a justiça climática em toda a África, temos vindo a apontar como urgentes. Esta é a nossa esperança. Voltar ao actual sistema de funcionamento não pode ser uma opção. Precisamos de respostas assentes em novas formas de regionalismo e solidariedade para a recuperação e a transição, e que sejam justas e justas para todos, especialmente para os pobres e os mais vulneráveis. Empenhamo-nos e apelamos aos movimentos e organizações da sociedade civil em toda a África e em todo o mundo para que se juntem a nós na luta por um novo mundo.

APELO À ACÇÃO: As nossas exigências para criar coletivamente uma nova esperança e uma recuperação justa para África e para o mundo

  1. Sistema de serviços essenciais de apoio, fornecimento de alimentos, água e assistência sanitária:

Fornecer equipamento de protecção o pessoal da saúde e trabalhadores essenciais na linha da frente, incluindo recolhedores e catadores de lixo, trabalhadores do sector alimentar, pequenos produtores e de alimentos de subsistência, etc.


Os sistemas de saúde em toda a África precisam de ser totalmente revistos e remodelados, com serviços de saúde gratuitos e acessíveis a todos os africanos como um direito humano. África deve criar a própria capacidade de desenvolver as nossas próprias curas, produzir medicamentos e equipamento no nosso continente para o nosso povo, sob propriedade pública e não sob a ganância privada, com o princípio da soberania dos povos, para que não precisemos de importar tudo do exterior.


Qualquer vacina que esteja a ser desenvolvida para combater a COVID-19 tem de estar livres de patentes e livremente disponível à todas as pessoas em todo o mundo. Os africanos não devem ser utilizados como cobaias para testar quaisquer novas vacinas propostas e os testes devem ser aprovados e realizados de forma transparente e universal.


Todos os Estados africanos devem reconhecer os camponeses, produtores de pequena escala e de alimentos de subsistência como um sector essencial nesta crise. Todas as medidas de emergência implementadas devem ser orientadas pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses (UNDROP).


Os Estados africanos devem comprometer-se a priorizar as necessidades das comunidades com escassez de água, incluindo a disponibilidade de camiões de água, uma vez que o acesso à água é essencial para combater este vírus.


Impor uma moratória a todos os despejos e à recusa de serviços públicos enquanto durar a pandemia, dando prioridade às famílias pobres e mais vulneráveis.


Os transportes públicos com baixo teor de carbono devem ser desenvolvidos a nível local e regional em toda a África, para que não dependamos de voos caros e poluentes e de transportes privados como estamos actualmente a fazer.

2. Reorganizar a economia, apoiar a redistribuir o trabalho de prestação de cuidados:
Reconhecer a injustiça da divisão sexual do trabalho e insistir numa redistribuição e valorização do trabalho assistêncial na sustentação da vida, que atualmente é feito em grande parte por mulheres em casa, e bem como a maioria dos trabalhadores do sector da saúde.

Apoiar as economias locais, especialmente os sistemas locais de produção de alimentos para o consumo local.

Instituir um subsídio universal e/ou de base para apoiar os meios de subsistência e as famílias.


3- Interromper todos os projectos extrativos e de combustíveis fósseis e preservar os direitos humanos:


Todos os projectos de combustíveis fósseis, de agricultura, indústria extractiva e industrial (especialmente as tecnologias de modificação genética) devem ser interrompidos durante e após o período pandémico em todos os países africanos, independentemente do local onde as empresas estão sediadas. Ademais, os incentivos públicos à indústria dos combustíveis fósseis e ao complexo industrial militar devem ser interrompidos.


Os processos liderados democraticamente devem rever e fornecer recursos às pessoas e comunidades afectadas por esses projectos da indústria extractiva, incluindo os trabalhadores desses sectores,Adicionalmente, empresas devem ser obrigadas a reabilitar ecossistemas danificados e poluídos


Os direitos de consentimento das comunidades e o seu direito de dizer NÂO a projetos prejudiciais devem ser respeitados, e estes devem ser objetos de uma auscultação democrática. Os governos não devem desrespeitar leis e regulamentos ambientais que garantam a participação pública e outros direitos humanos.


Mais importante ainda, os Estados africanos devem responsabilizar os que estão no poder, especialmente a polícia e os militares, e os crescentes casos de abuso e violência injustificável. Estes atos hediondos devem cessar imediatamente, durante esta pandemia, e posteriormente. Devem ser criados órgãos independentes de inquérito e provedores de justiça para que os cidadãos possam falar livremente e em segurança, sem violações dos direitos humanos. A violência tem de acabar.

4- Parar as políticas de austeridade, Parar a crise da dívida, Aceitar Apoio Financeiro como donativos NÃO empréstimos, Reconhecimento da dívida climática
O financiamento para apoiar a resposta e a recuperação do Covid-19 nos países africanos deve ser aceite apenas como donativos NÃO como empréstimos, e não deve estar associado a qualquer tipo de condicionalismo de ajustamento estrutural que, sem dúvida, enfraqueceria ainda mais os serviços sociais.


A austeridade e as medidas de ajustamento estrutural devem ser travadas e invertidas, e deve haver apoio aos direitos humanos, à saúde, à educação e aos meios de subsistência para todo(a)s os africana(o)s e todas as pessoas.


Toda a dívida histórica imposta pelas instituições financeiras internacionais deve ser anulada com efeito imediato. Estas dívidas só irão paralisar ainda mais os Governos na resposta à crise pandémica.


Reconhecendo a dívida climática e ecológica pelo Norte Global em relação a África e ao resto do Sul Global. O apoio financeiro à África não deve agrava a crise de dívidas.


Os Estados africanos devem tomar medidas robustas para eliminar funcionário(a)s corrupto(a)s e redes de corrupção que estão a politizar o apoio às famílias vulneráveis durante esta pandemia, dificultando respostas e utilizando imoralmente esta crise para aumentar os seus benefícios pessoais.

5- Apoiar uma Recuperação Justa
Os pacotes de recuperação devem apoiar primeiro as pessoas mais pobres e mais vulneráveis, sem absolutamente nenhum regaste financeiro para as grandes empresas. Os resgates financeiros só devem ir para os trabalhadores afectados por encerramentos.


Devem ser impostos limites significativos ao poder corporativo não controlado e as medidas de responsabilização devem ser aumentadas.


Uma transição holística e justa deve ser a recuperação que devemos construir. Isto inclui a análise das causas profundas das crises do Covid-19, crise climática e outras, bem como da forma como respondemos à construção de resiliência na sociedade. O clima tem de estar no cerne de qualquer esforço de reconstrução.


Precisamos de vontade política para sair desta pandemia com uma economia e uma sociedade que cuide igualmente dos povos e do planeta, precisamos de uma transição justa e de uma recuperação justa.

Signatários iniciais

Centre for Alternative Research and
Studies (CARES), Mauritius

Centre for Natural Resources Governance
(CNRG), Zimbabwe

Diálogo dos Povos – África Austral

Friends of the Earth Africa

Grain Africa

GroundWork (Friends of the Earth South Africa)

Health of Mother Earth Foundation8.

Justiça Ambiental (Friends of the Earth Mozambique)

Khelkom Fishers Association

La Via Campesina Africa

Lumiere Synergie pour le Developpement (LSD)

People’s Dialogue Southern Africa

Rural Women’s Assembly

Save Lamu movement, Kenya

South Durban Community Environmental Alliance (SDCEA)

We Are The Solution movement

WoMin African Alliance

World March of Women


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