quinta-feira, 18 de junho de 2020

Das moscas, dos baldes de lixo:Isolamento social e o dia-a-dia das crianças em situação de rua

- Reflexão da Profa. Dra. Elvira Moisés da Silva Cazombo
Mwixi Tembo reclina os olhos para o chão: de onde lhe pode vir o socorro?

Desde que se decretou o Estado de emergência no dia 27 de março, varias famílias experimentam a desolação econômica. Como resultado desta medida, que se apresentou como necessária, a desestruturação das famílias vai dando espaço a fome e pobreza extrema.

Este novo contexto social se apresenta como desafio as tradições teologias africanas sobre o cuidado a vida. Raul de Asua Altuna (1980, 104) afirma que a vida nas culturas bantu só tem sentido quando ela é vivida na comunidade. A participação na vida comunitária “é chave para a compreensão dos costumes e instituições da vida…é o fecho da abobada da sociedade bantu. A dependência da vida comunitária tira as possibilidades do isolamento individual.

A Mwixi Tembo não pode viver sem família, nem clã, os dois grupos primários, fundamentais e vitais que dão sentido e consistência à sua vida. Agora sobreviver da comida do lixo e da prostituição nas ruas isso é de africano?

- livro de referência : ALTUNA, Raúl Ruiz de Asúa
Cultura banto e cristianismo / Raúl Ruiz de Asúa Altuna. - Luanda : Âncora, 1974. - 211 p.




histórias de vida:
Sobreviver da comida do lixo e da prostituição nas ruas

17 de Junho, 2020

A recolha de alimentos em contentores e outros locais de acumulação de lixo faz, há mais de três anos, a rotina do pequeno Mwixi Tembo (nome fictício) para sobreviver, desde que fugiu da casa dos pais, por alegados maus tratos recebidos do padrasto, que vive maritalmente com a mãe, há oito anos.

O olhar esquivo e o tom em que fala vincam o sentimento de revolta enraizado na mente destroçada por traumas. O quadro lembra a emoção expressa pelos adultos, quando descrevem as dificuldades transpostas em cenários de desespero, que levaram o menino de 14 anos a dar pouca importância ao facto de "ter ou não ter pai e mãe."

A sujidade nos calções que veste, os chinelos gastos, nos pés, o rosto desfigurado por cicatrizes resumem o esforço que o menino empreende para sobreviver à interminável disputa com outros petizes, a fim de conquistar o respeito "na selva”.

Maria Bualette Issanzu (nome fictício), que por influência de colegas e amigas começou a consumir álcool, ganha a vida nos parques de estacionamento de camiões. O rosto atraente e a moldura no corpo funcionam como isca que atrai os clientes, via de regra adultos e utentes de viaturas. Por vezes atende solicitações definidas por uma intermediária mais velha.

Proibida de passar pela casa dos pais que cuidam da sua filhinha, recorre aos préstimos de irmãos e pessoas que frequentam o lar paterno. Com este ofício "não passo fome, nem durmo na rua”.A pseudo independência espevitou a negligência em relação aos estudos.

Inicialmente receosa, implora pela discrição. "Não faz imagem nem grava”, impõe a adolescente, virando as costas, baixando a cabeça e condiciona: “se for para a rádio não posso, ou já estás a gravar?” Finalmente parte para o diálogo.

A partir da escola aprendeu com as colegas a assediar clientes. A princípio só para um saldo ou comprar merenda, durante os intervalos do turno. “A minha presença despertou sempre o interesse dos homens e minhas amigas incentivaram-me a tirar proveito máximo da situação. Engravidei pela primeira vez e saquei” - conta. Acrescenta que da segunda gestação “veio a menina que tanto adoro”.

Bualette diz que tentou, sem sucesso, um recomeço diferente, ”mas a facilidade com que ganha o dinheiro falou mais alto”. Consciente que o tempo de vacas gordas passa, projecta amealhar parte dos rendimentos para investir num negócio digno.

Comemorações simbólicas em todos os municípios, reflexões em palestras, e ciclos de formação sobre a situação da criança perante a pandemia da Covid-19, violência, expansão de pontos focais, parâmetros e fluxos da criança, visitas de auscultação e operacionalização da rede de atendimento SOS preenchem a agenda de actividades em curso, alusivas ao mês de Junho, consagrado à criança.

Falta de afecto

Segundo a chefe dos serviços provinciais da Lunda-Sul do Instituto Nacional da Criança, Jaqueline Chicapa, os esforços gizados para ga-rantir uma vida estável à criança resvalam por "falta de afecto". O quadro é resultado da desestruturação as-sustadora das famílias, o que leva muitos petizes a "trocarem a casa pela rua e os centros de acolhimento".

Como mãe atenta aos problemas que acentuam a perda de valores, constata, preocupada, o facto de os pais terem um papel na família muito limitado, não intervindo para corrigir o que está mal. Este fenómeno ganha mais espaço em zonas urbanas onde a influência social incentiva o crime, o consumo prematuro de álcool e a prostituição, da qual resultam gravidezes precoces e doenças de transmissão sexual.

Jaqueline Chicapa fala da insistência na realização de casamentos precoces de adultos com meninas a partir dos 14 anos em localidades rurais, e da sedução de menores por mais velhas, que geralmente agem como intermediárias no aliciamento de menores para a prostituição.
Entre as causas que incentivam crianças e adolescentes a enveredarem por caminhos ínvios aponta as telenovelas, conversas de adultos em presença de menores, as publicações nas redes sociais e outros meios.

Participação em crimes

Assinalou também a participação de menores, via de regra do sexo masculino, como "pontas de lança" em crimes engendrados por adultos, pelo facto de os primeiros serem "inimputáveis perante a lei, devidamente instruídos para não revelarem o local de residência."

A também antiga deputada infantil na província da Lunda-Sul fala da existência de um número reduzido de "crianças na rua" como resultado de uma campanha de recolha realizada pelas autoridades por força da pandemia da Covid-19, e consequente integração nos lares de acolhimento S.João Calábria e Primeiro de Dezembro, todos em Saurimo.

A sua actividade conta com larga parceria da Acção Social Família e Igualdade do Género (ASIG) e Procuradoria Geral da República para os casos de conflito com a lei que envolvam crianças.

Desde que assumiu o cargo, em Outubro de 2019, Jaqueline Chicapa conta apenas com a prestação de um colaborador, na única sala disponibilizada no edifício das repartições públicas. Os dois computadores atribuídos poucos dias depois de assumir funções constituem o património do INAC na província.

A estória do “Paulo”, aliás “Maneli”
- por Edna Cauxeiro

“Com licença, bom dia tia, a tia não pode só me dar comi-da?”. Do alto, olha para o rapaz todo andrajoso: descalço, calção e camisola furados e imundos.

Nas suas mãos, um saco transparente permite ver no interior alguma comida. “Sobe”, autoriza, ao que o mesmo responde: “paro no quê, tia?”.Resposta: no terceiro andar. É lá que aguarda pelo menino. “Como te chamas? Que idade tens? Onde vives?”, pergunta. Olha para a “tia” desconfiado, tenta mentir que tem seis anos, mas, exceptuando a altura, o seu desenvolvimento indica que tem mais. “Que idade tens?”, repete.

“Maneli”, nome inicial, diz ter oito anos, ser morador do bairro Imbondeiro e filho de tio António e tia Feli, ambos desempregados. “Essa comida que tens no saco tiraste do lixo?”. Garante que não. “Uma tia, de um outro prédio me deu. A tia não pode só me dar também roupas?”, pergunta.

Pelo seu tamanho, dificilmente as roupas das crianças em casa da “tia” caberiam nele. Ainda assim aparece entre as peças uma t-shirt, que entrega ao rapaz, agora sorridente.

“Quem te furou a orelha, a tua mãe não ralhou contigo?”. Olha, envergonhado, para o chão e diz que a mãe ainda não o viu com a bijuteria colocada na orelha, a seu pedi-do, por Makaya, uma prima. Maneli abandonou os estudos porque os pais não têm condições, conta. “Como te chamas mesmo?”. “Sou o Paulo, tia”, mente. “Há bocado não disseste que o teu nome é Maneli?”, pergunta. “Eh, se esqueci, tia.

É Maneli mesmo”, diz. “O que queres ser quando cresceres?”, pergunta. A resposta é demorada, mas firme: “quero trabalhar na Elisal, para recolher o lixo”, porque hoje “no lixo encontro muitas coisas boas, que ainda dá para usar”. Despede-se da criança com a satisfação de, ao menos, lhe ter arrancado um sorriso.

Como ele, são inúmeros os rapazes que continuam a vaguear, diariamente, pelas centralidades, em busca do pão de cada dia. Nem sempre é possível beneficiarem da compaixão e da simpatia dos moradores, agastados e sem condições para auxiliar tanta criança faminta, rota, descalça, sem máscara nem luvas para se protegerem da pandemia que assola o país e o mundo.

_______________

para aprofundar: A análise da contabilização das privações em Angola reflecte que a pobreza infantil é multidimensional, exigindo uma abordagem dos múltiplos sectores para assegurar o bem-estar das crianças em Angola. A análise de sobreposições forneceorientações adicionais acerca de potenciais vantagens de respostas programáticas conjuntas às carências enfrentadaspelas crianças. Uma informação detalhada permitirá uma melhor tomada de decisões, originando melhores resultados,numa abordagem completa e integrada.
fonte:
 https://www.unicef.org/angola/media/1706/file/A%20crian%C3%A7a%20em%20Angola.%20Uma%20an%C3%A1lise%20multidimensional%20da%20pobreza%20infantil.pdf.



Nenhum comentário:

Postar um comentário